terça-feira, 18 de março de 2008

Perto do fim - Prisão Civil na Alienação Fiduciária

Em 15 de Dezembro de 2005 foi distribuído perante o STF o Recurso Extraordinário 466.343, sendo escolhido Relator o Ministro Cezar Peluso.

O Recurso foi interposto pelo Bradesco, cujos advogados informaram que o TJ-SP julgou procedente ação de depósito, decorrente de busca e apreensão de um automóvel financiado pelo banco para cliente que se tornou inadimplente. No entanto, o acórdão atacado não previu a possibilidade de decretação de prisão civil de depositário infiel, conforme previsto pelo inciso LXVII, do artigo 5º da Constituição Federal, sustenta o Bradesco.

Para o Bradesco, a interpretação do TJ-SP feria, entre outras normas, o disposto no artigo 66, da Lei nº 4.728/65, com a redação dada pelo artigo 1º do Decreto-lei nº 911/69, que determinou que “a alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direito e depositário de acordo com a lei civil e penal”. O banco alegou que a Constituição de 1988 teria recepcionado esta norma e assim seria admitida a prisão civil no caso.
O Ministro Relator em seu voto, proferido em 22/11/2006, afirmou que “não existe afinidade alguma ou conexão teórica entre dois modelos jurídicos que permita à razão passar de um para outro”. A cláusula final do contrato de depósito está na “guarda e reposição da coisa depositada”, ou seja, “a obrigação de guardar para restituir, inerente à tipicidade do depósito”, integra a figura do depositário como responsável pela obrigação. Citando inteligência jurídica consagrada, o ministro ressaltou que “se ao depositário se concede o direito de usar da coisa, já não haverá depósito”.

Por outro lado, “a abertura de crédito com garantia de alienação fiduciária” revela a intenção de provisão de recursos para aquisição de bens duráveis, constituindo-se em garantia do pagamento do crédito. Dessa forma, o sentido de alienação fiduciária para aquisição bens é o “negócio jurídico em que um dos figurantes adquire, em confiança, determinado bem, com a obrigação de devolvê-lo, ao se verificar certa condição acordada”. Sob essa ótica, para Cezar Peluso, “é impossível encontrar na alienação fiduciária em garantia, resíduo de contrato de depósito e até afinidade de situações jurídicas subjetivas entre elas”.

O relator ressaltou que, inaugurada pela Constituição de 1934, a doutrina jurídica que prevalece no Brasil é a de estabelecer “entre os direitos e garantias individuais, que ‘não haverá prisão por dívidas, multas ou custas’ sem qualquer outra restrição”. As exceções foram abertas pela Constituição de 1946 que previa a prisão civil por inadimplemento de prestação de alimentos e a de depositário infiel, tal como se mantém na atual Constituição. Assim, “não se pode estender por interpretação o regime especial (a exceção) a outras hipóteses. Ao lado do regime geral (a regra) é que se acham as forças sociais preponderantes na reconstituição semiológica e na aplicação de toda regra de direito positivo, sobretudo quando hospede garantias fundamentais ou valores individuais supremos”.

Com estas considerações, negou provimento ao Recurso, tendo sido acompanhado pelos Ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio.

Por se tratar de assunto idêntico, a presidente do STF, ministra Ellen Gracie, chamou para julgamento o RE 349703, do Banco Itaú S.A., cujos autos, da mesma forma, serão objeto de vista do ministro Celso de Mello.

O ministro Gilmar Mendes adotou seu voto-vista no RE 349703, para o qual havia pedido vista, no caso em discussão.

O ministro constatou que existe eventual conflito entre o tratado de São José da Costa Rica, de 1969, ratificado pelo Brasil em 1992, e o ordenamento constitucional brasileiro. Gilmar Mendes afirmou que “as legislações mais avançadas em direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil, decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente”.

Na ocasião, pediu vista dos autos o Ministro Celso de Mello, para uma maior reflexão.

Finalmente no último dia 12 de março o processo foi apresentado em mesa pelo Ministro Celso de Mello. Em um voto lido durante quase duas horas, Celso de Mello se posicionou contra a prisão do depositário infiel, relembrando votos que o ministro Marco Aurélio vem proferindo há tempos contra a prisão do depositário infiel. Qualificou os votos de Marco Aurélio como precursores de uma nova mentalidade que está surgindo no Supremo. O ministro Celso de Mello lembrou que o Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil em 1992, proíbe a prisão civil por dívida, excetuado a do devedor de pensão alimentícia. O mesmo, segundo ele, ocorre com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, patrocinado em 1966 pela Organização das Nações Unidas, ao qual o Brasil aderiu em 1990. Em seu artigo 11, ele dispõe: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”. Até a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana, firmada em 1948, em Bogotá (Colômbia), com a participação do Brasil, já previa esta proibição, disse o ministro.

Ele observou que a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que aconteceu em Viena (Áustria), em 1993, com participação ativa da delegação brasileira, então chefiada pelo ex-ministro da Justiça e ministro aposentado do STF Maurício Corrêa, preconizou o fim da prisão civil por dívida. O ministro lembrou que, naquele evento, ficou bem marcada a interdependência entre democracia e o respeito dos direitos da pessoa humana, tendência que se vem consolidando em todo o mundo. Tanto isso é verdade, segundo ele, que, hoje, os Estados totalitários se confundem com aqueles que desrespeitam os direitos humanos. E o Brasil, ao subscrever a declaração firmada no final da mencionada conferência, abriu a possibilidade de cidadãos brasileiros, que considerarem desrespeitados os seus direitos fundamentais, recorrerem a cortes internacionais, o que já vem ocorrendo.

Celso de Mello invocou o disposto no artigo 4º, inciso II, da Constituição Federal, que estabelece a prevalência dos direitos humanos como princípio nas suas relações internacionais, para defender a tese de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, mesmo os firmados antes do advento da Constituição de 1988, devem ter o mesmo status dos dispositivos inscritos na Constituição Federal. Ele ponderou, no entanto, que tais tratados e convenções não podem contrariar o disposto na Constituição, somente complementá-la. A Constituição já dispõe, no parágrafo 2º do artigo 5º, que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. O ministro Gilmar Mendes discordou parcialmente desse aspecto do voto de Celso de Mello, para defender a Emenda Constitucional 45/04, da reforma do Judiciário. A emenda acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição para dispor que esse status (a equiparação a dispositivo constitucional) somente será alcançado se o Congresso Nacional ratificar o respectivo tratado ou convenção, por votação em dois turnos, com maioria de dois terços.

Ainda em seu voto, Celso de Mello deixou claro que não atribui aos demais acordos e tratados internacionais, por exemplo, os que versem sobre comércio, status igual àqueles que versem sobre direitos humanos. Para estes, ele defende, sim, a necessidade de ratificação pelo Congresso, nos termos previstos na EC-45.

Cezar Peluso reiterou sua posição sobre o tema. “O que se tem hoje como direito posto é a inadmissibilidade da prisão do depositário, qualquer que seja a qualidade desse depósito”, disse ele, que é relator de um dos processos em julgamento, o Recurso Extraordinário 466.343. “Já não é possível conceber o corpo humano como passível de experimentos normativos no sentido de que se torne objeto de técnicas de coerção para cumprimento de obrigações estritamente de caráter patrimonial”, afirmou. A única ressalva feita por ele foi quanto ao inadimplente de pensão alimentar.

Após o voto-vista do Senhor Ministro Celso de Mello, negando provimento ao recurso, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Menezes Direito. Além do Ministro Menezes, faltam os votos dos Ministros Eros Grau e Ellen Gracie. Mas o placar está oito a zero para derrubada da prisão civil na alienação fiduciária.

Fontes: direitonet; site do Supremo e blog do Professor Flávio Tartuce.

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