sexta-feira, 1 de março de 2019

O STJ E O CASO DA CRIOGENIA DE UM CADÁVER

RECURSO ESPECIAL Nº 1.693.718 - RJ (2017/0209642-3)
RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE
RECORRENTE : LIGIA CRISTINA MELLO MONTEIRO
ADVOGADOS : CRISTIANE DE MEDEIROS BRITO CHAVES FROTA  - RJ085056
SORAYA RIBAS SAMPAIO BARROS  - RJ146178
PAULA ALEXANDRA MALGRAND PRINCIPE PESSOA  - RJ022911
RECORRIDO  : CARMEN SILVIA MONTEIRO TROIS
RECORRIDO  : DENISE NAZARE BASTOS MONTEIRO
ADVOGADOS : RODRIGO MARINHO CRESPO  - RJ135204
ANTONIO VANDERLER DE LIMA  - RJ035211
THIAGO AMORIM RODRIGUES  - RJ183823
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ORDINÁRIA. 1. DISPOSIÇÃO DO PRÓPRIO CORPO
PARA DEPOIS DA MORTE. CRIOGENIA. VONTADE DO FALECIDO NÃO CONFIRMADA
PELAS PROVAS DOS AUTOS. SÚMULA 7 DO STJ. 2. RECURSO ESPECIAL
IMPROVIDO.
DECISÃO
Trata-se de recurso especial interposto por Lígia Cristina Mello
Monteiro, com base no art. 105, inciso III, alínea a, da
Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro assim ementado (e-STJ, fls. 722-723):
EMBARGOS INFRINGENTES   CRIOGENIA   ANALOGIA LEI Nº 6.015  
DECLARAÇÃO DE VONTADE   INEXISTÊNCIA   CHANCE DE CURA   AUSÊNCIA DE
INDÍCIOS   FORMA E LOCAL DE SEPULTAMENTO   DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. I- O direito de dispor do corpo  após a morte  é um direito
da personalidade, e por isto inerente a seu titular. II- O direito
não pode ficar alheio aos avanços da ciência, a se permitir a
disposição do corpo de forma diversa das usuais e típicas. III-
 Criogenia ou criopreservação consistente na preservação de
cadáveres humanos em baixas temperaturas para eventual e futura
reanimação e insere-se dentre os avanços científicos que deram nova
roupagem a ciência e medicina, rompendo com antigos paradigmas
sociais, religiosos e morais.  (Apelação Cível n.
0057606-61.2012.8.19.0001, Rel. Des. Flávia Resende, pág. 507/525)
IV- Inexistindo regulamentação quanto a outras formas de
sepultamento, deve-se aplicar, por analogia, a norma da Lei nº
6.015, que permite a cremação, mediante autorização expressa da
pessoa interessada.  V- Impossibilidade de se substituir a
manifestação de vontade do falecido, pela vontade de uma de suas
filhas. Caráter personalíssimo do direito de dispor sobre o corpo,
após a morte. VI   Situação fática onde há incerteza quanto a real
vontade do falecido, em razão das sequelas de um AVC. VII - Total
ausência de resultados favoráveis com o procedimento de criogenia.
Princípio da dignidade humana que deve ser observado, assim como a
segurança jurídica das relações subsequentes, que acentua a
responsabilidade de se conferir o destino dado ao corpo após a
morte.  VIII- Razoabilidade que se aplica quanto ao local do
sepultamento. Parcial acolhimento dos embargos infringentes.
Não foram opostos embargos de declaração.
Nas razões do apelo extremo (e-STJ, fls. 957-984), a recorrente
aponta ofensa aos arts. 4° da LINDB; 14, § 2°, do CC; e 77 da Lei n.
6.105/1973.
Em síntese, sustenta que a última vontade de seu pai, o Sr. Luiz
Felippe Dias de Andrade Monteiro , era de ser submetido a criogenia
após a morte.
Argumenta não ser necessário nenhum tipo específico de manifestação
de vontade de disposição do próprio corpo para depois da morte,
podendo o desejo do de cujus ser perfeitamente aferido pelo
testemunho de seus parentes.
Alega não ser curial em nossa cultura a realização de disposição de
vontade sobre o próprio corpo para depois da morte, razão pela qual
o querer do falecido deve ser aquilatado pelo testemunho de parentes
próximos, como o da recorrente, filha que conviveu com o Sr. Luiz
Felippe por mais de 30 (trinta) anos.
Defende que o sepultamento do corpo de seu pai, conforme determinado
pelo Tribunal local, violenta a vontade daquele, em franco
desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos
direitos da personalidade.
Contrarrazões às fls. 1.141-1.146(e-STJ).
Admitido o processamento do recurso na origem (e-STJ, fls.
1.148-1.150), ascenderam os autos a esta Corte.
Brevemente relatado, decido.
A irresignação não merece prosperar.
Na origem, Carmen Silvia Monteiro Trois e outra ajuizaram ação
ordinária contra Lígia Cristina Mello Monteiro. Em síntese, a
exordial tem como escopo impedir a submissão do corpo do Sr. Luiz
Felippe Dias de Andrade Monteiro, pai das autoras e da ré, ao
procedimento de criogenia e, ainda, determinar o sepultamento dos
restos mortais do falecido.
A sentença de primeiro grau, confirmando liminar anteriormente
concedida, julgou parcialmente procedente o pedido, nos seguintes
termos (e-STJ, fl. 91):
ISTO POSTO, declaro resolvido o mérito da causa e, na forma do art.
269, I, do CPC, julgo parcialmente procedente o pedido para tomar
definitiva a liminar expedida, devendo a ré se abster de trasladar o
corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro para os Estados
Unidos da América, devendo ser o mesmo entregue para regular
sepultamento no local indicado pelas autoras da ação.
Estendo os efeitos da liminar requerida para autorizar o imediato
sepultamento do corpo, uma vez que se  encontra disponível a
documentação necessária, devendo ser expedido ofício para a empresa
responsável pelo depósito do corpo, determinando sua liberação.
Custas rateadas e honorários compensados, em vista da sucumbência
recíproca.
Inconformada, a ré - Lígia Cristina Mello Monteiro   apelou para o
Tribunal de Justiça fluminense, que, por maioria de votos, deu
provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa (e-STJ, fls.
533-534):
CRIOGENIA. DESTINAÇÃO DE RESTOS MORTAIS.  DISPOSIÇÃO DE ULTIMA
VONTADE. INEXISTÊNCIA DE TESTAMENTO OU CODICILO. DIREITO DA
PERSONALIDADE. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. AUSÊNCIA DE
CONSENSO ENTRE AS LITIGANTES. AFETIVIDADE. PROVA DOCUMENTAL ROBUSTA,
QUE DEMONSTRA QUE O DE CUJUS DESEJAVA VER O SEU CORPO SUBMETIDO AO
PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA.
1. A criogenia ou criopreservação consiste na preservação de
cadáveres humanos em baixas temperaturas para eventual e futura
reanimação e insere-se dentre os avanços científicos que deram nova
roupagem a ciência e medicina, rompendo com antigos paradigmas
sociais, religiosos e morais.
2. Disputa acerca da destinação dos restos mortais do pai das
litigantes, cujo desate não consiste na unificação da vontade das
partes, mas sim na perquirição da real vontade do falecido.
3. Disposição de última vontade do falecido quanto à destinação de
seu cadáver após a morte, que se insere dentre os direitos da
personalidade constitucionalmente assegurados. Inexistência de
testamento ou codicilo que não deve inviabilizar o cumprimento dos
desígnios do falecido, sob pena de afronta ao princípio da dignidade
da pessoa humana. Segundo Kant, cada pessoa deve ser tratada como um
fim em si e nunca como um simples meio para satisfazer interesses
alheios.
4. Em que pese, a solenidade e o conservadorismo do direito
sucessório pátrio, são reconhecidas formas excepcionais de
testamento, como o particular, nuncupativo, marítimo e aeronáutico
que prescindem das formalidades ordinárias e visam impedir que o
indivíduo venha a falecer sem fazer prevalecer sua derradeira
vontade.
5. Os elementos constantes dos autos, em especial a prova
documental, demonstram de forma inequívoca o desejo do falecido de
ter o seu corpo congelado após a sua morte.
6. Inafastável a aptidão da parenta mais próxima do falecido, com
quem mantinha relação de afeto e confiança incondicionais, conforme
demonstrado pelas provas carreadas aos autos, no caso, sua filha
Lygia para dizer sobre o melhor destino para os restos mortais do
falecido, ou seja, aquele que melhor traduz suas convicções e
desejos à época de seu falecimento. Maria Berenice Dias, in Manual
das Sucessões, escreve:  A Constituição Federal elevou a afetividade
à categoria de direito constitucional tutelado, ao afirmar que a
família é a base da sociedade e merece especial proteção do Estado
(CF 226). Ainda que a transmissão da herança se trate de direito
individual, o que fundamenta o direito sucessório nos dias atuais é
o afeto. A lei civil faz presumir esses laços de amor quando não são
determinados por escolha em disposição de última vontade.
(grifamos) 
7. Ausência de previsão legal acerca do tema   criogenia   que, na
forma do art. 4º da LICC, autoriza a aplicação analógica das
disposições existentes acerca da cremação, para a qual a Lei de
Registros Públicos não estabeleceu forma especial para a
manifestação de vontade do falecido. Precedentes deste Egrégio
Tribunal.
8. Inexistência de paradigma jurisprudencial que não inviabiliza a
pretensão diante da ausência de vedação legal e da demonstração de
ser esta a disposição de última vontade do falecido. Recurso
provido.
Irresignadas, as autoras opuseram embargos infringentes, que foram
parcialmente acolhidos, nestes termos (e-STJ, fls. 722-723):
EMBARGOS INFRINGENTES   CRIOGENIA   ANALOGIA LEI Nº 6.015  
DECLARAÇÃO DE VONTADE   INEXISTÊNCIA   CHANCE DE CURA   AUSÊNCIA DE
INDÍCIOS   FORMA E LOCAL DE SEPULTAMENTO   DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. I- O direito de dispor do corpo  após a morte  é um direito
da personalidade, e por isto inerente a seu titular. II- O direito
não pode ficar alheio aos avanços da ciência, a se permitir a
disposição do corpo de forma diversa das usuais e típicas. III-
 Criogenia ou criopreservação consistente na preservação de
cadáveres humanos em baixas temperaturas para eventual e futura
reanimação e insere-se dentre os avanços científicos que deram nova
roupagem a ciência e medicina, rompendo com antigos paradigmas
sociais, religiosos e morais.  (Apelação Cível n.
0057606-61.2012.8.19.0001, Rel. Des. Flávia Resende, pág. 507/525)
IV- Inexistindo regulamentação quanto a outras formas de
sepultamento, deve-se aplicar, por analogia, a norma da Lei nº
6.015, que permite a cremação, mediante autorização expressa da
pessoa interessada.  V- Impossibilidade de se substituir a
manifestação de vontade do falecido, pela vontade de uma de suas
filhas. Caráter personalíssimo do direito de dispor sobre o corpo,
após a morte. VI   Situação fática onde há incerteza quanto a real
vontade do falecido, em razão das sequelas de um AVC. VII - Total
ausência de resultados favoráveis com o procedimento de criogenia.
Princípio da dignidade humana que deve ser observado, assim como a
segurança jurídica das relações subsequentes, que acentua a
responsabilidade de se conferir o destino dado ao corpo após a
morte.  VIII- Razoabilidade que se aplica quanto ao local do
sepultamento. Parcial acolhimento dos embargos infringentes.
Daí o presente recurso especial interposto por Lígia Cristina Mello
Monteiro.
O Tribunal de Justiça fluminense, com arrimo no conjunto
fático-probatório dos autos, asseverou inexistir prova de que o Sr.
Luiz Felippe desejasse ter seu corpo submetido à criogenia após a
morte (e-STJ, fls.  730-733):
Extrai-se daí que a certeza quanto ao destino desejado pelo Sr. Luiz
Felippe só poderia ser aferida por prova inequívoca de que o mesmo
conhecia o alcance do congelamento e assim o quisesse, o que,
conforme visto acima, não houve, tendo em vista a divergência das
declarações pelo mesmo prestadas, numa mesma época.
Com mais razão, não se pode admitir seja sua vontade suprida pelo
simples consentimento de sua filha, até porque a mesma afirma que  o
falecido já não mais gozava de suas faculdades mentais plenas face a
um AVC sofrido  (fls. 596).
Logo, não se pode afirmar o desejo de ser submetido à criogenia,
sequer tendo sido o próprio a contratar previamente a empresa
americana, se de fato celebrou-se um contrato, uma vez que este não
veio aos autos.
Há sobretudo que se considerar que o Sr. Luiz Felippe, Oficial da
FAB e estudioso do assunto, saberia que se tratava de um
procedimento inusitado no Brasil e com implicações jurídicas
relevantes. Se de fato entendesse o alcance da criogenia, ou ser
possível a cura posterior para os males que o levaram à morte, teria
deixado orientações expressas a esse respeito, e não, ao contrário,
outorgado poderes para que seus bens fossem inventariados e
partilhados, pois não se vislumbra a possibilidade de alguém
pretender voltar à vida sem um mínimo financeiro que pudesse amparar
os gastos a tanto.
Aplica-se, portanto, por analogia, o § 2º, do art. 77 da Lei nº
6015/73, cuja finalidade é regular uma nova situação, na qual se
exige a prévia manifestação de vontade do interessado, devendo haver
prova quanto a esta, o que não ocorre no presente caso, como visto.
Também não há como se proceder à substituição da manifestação de
vontade, como defende a ré com base em alguns julgados, não só
porque inexiste certeza quanto à intenção do congelamento, como do
alcance real deste procedimento, visto que a ré afirma que o desejo
de seu pai era realmente de que o avanço da ciência permitisse a sua
eventual recuperação (fls. 39).
Com efeito, o parecer jurídico juntado pela ré às fls. 471/497 deixa
claro que a criônica tem como objetivo a reanimação no futuro e,
para tanto, os médicos utilizam  máquinas que mantêm a circulação do
sangue e a oxigenação do corpo  e, após mantê-lo no frio, o sangue é
retirado e inserido o líquido crioprotetor, sendo em seguida
direcionado para resfriamento por cerca de três horas para
 assegurar que todas as partes do corpo serão congeladas por igual 
(fls. 475).
[...]
Logo, há que se trilhar, aqui, pelo caminho da responsabilidade,
observando o alto gasto do procedimento, a comprometer as finanças
do falecido, sem que efeito concreto algum   retomada da vida  
ocorra, desnaturando a própria vontade do falecido, na visão de uma
filha que aqui figura como ré.
Dessa forma, inexistindo manifestação expressa de vontade do Sr.
Luiz Felippe quanto ao congelamento de seu corpo após a morte;
inexistindo indícios de chance de cura e de uma vida digna, não há
como autorizar o translado do corpo do Sr. Luiz Felipe para ser
submetido ao procedimento da criogenia, devendo prevalecer o enterro
como forma de sepultamento e destino dado ao corpo após a morte.
Desse modo, o acolhimento do inconformismo, segundo as alegações
vertidas nas razões do especial, demanda o reexame de provas,
situação vedada pela Súmula 7 do STJ.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, majoro os honorários em
favor dos advogados da parte recorrida em R$ 1.000,00 (mil reais).
Publique-se.
Brasília (DF), 29 de setembro de 2017.
MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator