“TESTAMENTO
VITAL” – CRISTIAN FETTER MOLD - Palestra
proferida no Congresso do IBDFAM-DF em 07 de Junho de 2013.
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Todos os seres humanos
aspiram viver dignamente e segundo seus valores vitais. O ordenamento jurídico
deve concretizar e, simultaneamente proteger estas aspirações.
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Podemos conceituar os
valores vitais como sendo o conjunto de valores e crenças de uma pessoa que dão
sentido ao seu projeto de vida.
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Mas a morte, como
destaca o texto da Legislação da Andaluzia sobre os Direitos e Garantias
durante o processo de Morte, a morte também faz parte da vida. Morrer constitui
o ato final da biografia pessoal de cada ser humano e não pode ser separada
daquela como algo distinto.
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Portanto o imperativo
de uma vida digna alcança também a morte. Uma vida digna requer uma morte
digna. O direito a uma vida humana digna não pode ser truncado com uma morte
indigna. O ordenamento jurídico está, por conseguinte, chamado também a
concretizar e proteger este ideal da morte digna (1).
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A legislação espanhola
mais recente, talvez por isso, fale em um “Direito a Viver com Dignidade o
Processo de Morrer” (2)
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Segundo Ana Carolina
Brochado e Luciana Dadalto Penalva, a centralidade da pessoa humana no atual
ordenamento jurídico provocou uma reflexão em vários âmbitos, que ultrapassa o
estritamente jurídico, expandindo-se para a área médica, bioética e
antropológica, entre outras (3)
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Na perspectiva médica,
continuam as autoras, fala-se em uma efetiva transformação na relação
médico-paciente, de uma relação autoritária para uma perspectiva dialógica, de
modo a se buscar constituir uma aliança terapêutica, na qual sejam respeitados
os direitos e garantias do paciente. Tal tutela ocorre a princípio por ser ele
“proprietário” do corpo doente, titular de autonomia que lhe autoriza governar
o próprio corpo, razão pela qual deve ser considerado pelo Direito como
soberano de si mesmo e da própria saúde. Por isso afirma-se o caráter
vinculante da vontade do paciente (4).
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Ademais, conforme
lembra o Professor Léo Pessini (5):
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“É necessário
cultivar a sabedoria de integrar a morte na vida, como integrante desta. A
morte não é uma doença e não deve ser tratada como tal. Não somos doentes nem
vítimas da morte. Podemos ser curados de uma doença classificada como mortal,
mas não da dimensão de nossa mortalidade. A nossa condição de existir como
seres finitos não é uma patologia. Quando esquecemos isso, acabamos caindo na
tecnolatria e na absolutização da vida biológica pura e simplesmente. Nesse
contexto, os instrumentos de cura e cuidado se transformam em ferramentas de
tortura.”
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Nesse contexto
insere-se esta breve palestra, nesse contexto inserem-se os “Testamentos Vitais”
ou “Diretivas Antecipadas de Vontade”.
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Para Ernesto Lippman,
autor de leitura obrigatória sobre quem se interesse pelo assunto, o Testamento
Vital é:
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uma declaração escrita da vontade de um
paciente, quanto aos tratamentos aos quais ele não deseja ser submetido caso
esteja impossibilitado de se manifestar, sendo importante que seus desejos
sejam documentados e manifestados de forma consciente e esclarecida (6).
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Embora não haja
legislação a respeito, o Testamento Vital passa a ser reconhecido no Brasil
através da Resolução 1995/2012, do CFM que se fundamenta na autonomia da
vontade do paciente, bem como na dignidade humana prevista na Constituição
Federal.
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Mencione-se inclusive o
artigo 41 do Código de Ética Médica, o qual sinaliza de forma clara que a
vontade expressa do paciente deve ser respeitada, e que devem ser evitados os
tratamentos fúteis, a chamada obstinação terapêutica, de modo a prolongar
artificialmente a vida do paciente em situação terminal ou de agonia (7).
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Ademais, além da
validade do Testamento Vital no Brasil estar escudada nos Princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e da liberdade, deve ser ainda
invocado o artigo 5º, inciso III da Constituição Federal, o qual proíbe o
tratamento desumano. E, sem dúvidas, o tratamento é desumano quando atinge a
dignidade da pessoa.
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Dessa forma, imputar a
um indivíduo a obrigação de ser submetido a tratamento médico que apenas
prolongará a sua vida, sem nenhuma perspectiva de melhorar ou curar a
enfermidade que, a seu critério, constitui um fardo, pelas consequências que
lhe provoca, ou seja, contra a sua vontade manifestamente expressa, constitui
tratamento desumano, vedado pelas escolhas feitas pelo legislador brasileiro ao
redigir a Carta de 1988.
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E é com base nos
Princípios da Constituição de 1988 que o Conselho Federal de Medicina em seu
Código Ético diz (art. 41, parágrafo único):
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“Nos casos de
doença incurável e terminal deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos
disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou
obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente, ou,
na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”
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Os autores que tem se
dedicado ao assunto, opinam em geral que o Testamento Vital (ou Diretivas
Antecipadas de Vontade), pode ser feito por instrumento público ou privado,
revogável total ou parcialmente a qualquer tempo.
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O texto deverá conter
as decisões e condutas que, a critério do Testador, deseja que sejam seguidas,
em relação a aplicação ou não das medidas possíveis para que sua vida seja
prolongada, caso esteja em situação terminal, ou situação de agonia, podendo
ainda incluir medidas para as hipóteses de :
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a) perda da
consciência;
b) coma
c) falta das funções
vitais; e
d) presença de sequelas
(8);
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Nos Estados Unidos,
onde o assunto vem sendo debatido desde os anos 70, são comuns as disposições
sobre RETIRADA DE SUPORTE VITAL, a NÃO OFERTA DE SUPORTE VITAL, e as Ordens de
NÃO RESSUCITAÇÃO, as quais passam a fazer parte do Prontuário do Paciente.
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Para muitos autores, é
possível também deixar informações sobre o desejo ou o não-desejo de algum tipo
de assistência religiosa, podendo também o Testador fazer disposições sobre o
seu funeral, cremação, e até mesmo a disposição sobre doação de órgãos e até
mesmo a disposição do próprio corpo para uma Faculdade de Medicina para estudos
posteriores.
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Entendemos também ser
indispensável a designação de pelo menos um responsável para ser o porta-voz e
representar o paciente perante a equipe médica e perante a própria família,
lembrando que muitas vezes componentes da própria equipe médica e membros da
família podem ter visões muito diferentes acerca do que seja ético se fazer ou
não, ou do que seja sagrado, podendo complicar a situação ou provocar debates
quase insanáveis.
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Ronald Dworkin em seu
livro “Domínio da Vida” (Ed. Martins Fontes, 2009) conta vários casos de
embates ocorridos na Justiça Americana envolvendo parentes, Hospitais, grupos
religiosos e Tribunais, quando o assunto “morte” vem à tona.
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Peguemos por exemplo o
caso da pessoa ativa e que por algum motivo encontra-se em estado vegetativo
persistente, tendo perdido por completo a possibilidade de interagir de qualquer
forma com seu semelhante, embora não tenha diagnóstico de morte iminente.
Consideremos que esta pessoa não tenha deixado qualquer diretiva antecipada
sobre os tratamentos a serem aplicados ou suprimidos, conforme permite a
legislação de vários países.
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Podemos encontrar,
facilmente, médicos e familiares que acreditem piamente que:
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a) aquele sofrimento é
desnecessário, pois não pode estar entre os interesses fundamentais de uma
pessoa ficar naquele estado;
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b) aquela pessoa sempre
foi tão ativa e “guerreira” que certamente está lutando pela sua vida, e não
temos o direito de interromper esta luta;
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c) aquela pessoa tinha
dito, informalmente, ao ver uma matéria televisiva a respeito, que jamais
gostaria de ficar daquele jeito e que por isso seus aparelhos deveriam ser
desligados.
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Diante de tais enfoques
incompossíveis, e uma vez que o paciente não pode mais se manifestar,
fundamental, portanto, a eleição, no texto das Diretivas Antecipadas, deste que
podemos chamar de “Procurador dos Cuidados de Saúde” ou ainda “Testamenteiro
Vital”.
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Sugere-se que esta
pessoa não tenha qualquer interesse financeiro na morte do paciente, para que
não haja conflito de interesses, e nem seja o médico responsável por seu
tratamento, para não haver qualquer conflito ético.
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O Testamenteiro Vital é,
portanto, a pessoa encarregada de portar o Testamento e, no momento oportuno,
levá-lo ao conhecimento da equipe médica, buscando garantir ao máximo o
respeito à vontade do paciente, até mesmo através de medidas judiciais caso
encontre oposições médicas e/ou familiares ao cumprimento das disposições,
podendo ainda tomar decisões em nome do paciente, caso tenha recebido poderes
para tanto.
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Quanto à idade mínima para se fazer um
Testamento Vital, cada ordenamento tem buscado suas soluções, as quais
convergem mais ou menos para o mesmo sentido.
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Para o legislador andaluz todo paciente menor de
idade tem direito a receber informações sobre sua enfermidade e intervenções
sanitárias propostas, de forma adaptada a sua capacidade de compreensão, tendo
direito também a manifestar sua opinião, se já contar com pelo menos doze anos
de idade. Não sendo capaz intelectual, nem emocionalmente para entender o
alcance das informações prestadas, estas deverão ser passadas a seus
representantes legais (9).
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Na Holanda, maiores de
12 anos podem decidir inclusive sobre a abreviação de sua vida, através da
prática da Eutanásia (10).
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Na Argentina,
reconhece-se a autonomia da vontade das crianças e adolescentes, as quais têm
direito a intervir para efeito de tomada de decisões sobre terapias e
procedimentos médicos que envolvam sua vida e saúde (11).
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No Brasil, o Código de
ética Médica e a doutrina médica recomendam que mesmo ao lidar com pessoa
absolutamente ou relativamente incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida
civil, o médico deve procurar incluir o paciente pediátrico nesse processo, à
medida que ele se desenvolve e que for identificado como capaz de avaliar seu
problema. Assim, para realizar procedimentos ou tratamentos em crianças e
adolescentes recomenda-se obter seu assentimento.
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“A capacidade de
compreender as consequências de seus atos é um processo que normalmente se
inicia a partir dos seis anos de idade e amadurece até o final da adolescência.
Dessa forma o menor tem direito a fazer opções sobre procedimentos diagnósticos
e terapêuticos, embora em situações consideradas de risco e frente à realização
de procedimentos de alguma complexidade, tornam-se sempre necessários, além do
assentimento do menor, a participação e o consentimento dos seus responsáveis
legais. Obter o equilíbrio entre o consentimento substitutivo e o assentimento
da criança ou do adolescente é importante para conseguir a empatia necessária
entre a equipe de saúde e o paciente pediátrico e sua família, além de entender
aos princípios éticos e legais do exercício profissional”(12).
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A doutrina
especializada ainda fala em procurar “captar os desejos da criança”, embora a
criança não seja considerada capaz. Já a partir dos 16 anos, não há dúvida
entre a doutrina brasileira sobre a capacidade para fazer qualquer testamento,
inclusive o testamento vital, sem a necessidade de assistência de seus pais,
como em qualquer outro tipo de testamento.
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Aproximando-se da minha
conclusão, há quem sustente que este tipo de palestra ou estudo é uma afronta à
sacralidade da vida humana.
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Aliás, a maioria
esmagadora das pessoas que me ouvem/leem provavelmente consideram a vida um “bem
sagrado”.
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Mas o conceito de
sagrado é subjetivo, inserido na esfera da liberdade individual de pensar e
acreditar em tudo aquilo que se entenda conveniente. Como diz Maria Lúcia Karam,
se o indivíduo livremente escolher adotar essa crença, certamente há de lhe ser
garantida a possibilidade de se comportar em conformidade com os preceitos
morais ou religiosos que assim prescrevam a indisponibilidade da vida (13).
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Mas, continua esta
autora,
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o Estado não pode
adotar preceito de sacralidade da vida humana. Se o adotar, estará abandonando
sua necessária laicidade e consequentemente se afastando do modelo democrático.
A liberdade de crer e de não crer em um ou mais Deuses ou em nenhum Deus há de
ser garantida pelo estado de direito democrático.
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Assim, se a vida
não pertence a Deus – e um estado laico não pode afirmar que a vida pertença a
deus – e se também não pertence ao indivíduo, por sua indisponibilidade,
chegaríamos a conclusão que o próprio corpo do indivíduo seria uma propriedade
do estado ou da sociedade, mas isto significaria instrumentalizar o individuo,
negar sua dignidade e totalitariamente contrariar os fundamentos do estado de
direito democrático. Nosso Estado, em suma, não pode impor ao indivíduo o
conceito de SAGRADO (14).
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Portanto defendo que
venha o debate público, que se discuta com seriedade o assunto, que se retire o
véu que encobre essas discussões. Que este debate se torne o centro de nossas
atenções, sem medo, sem hipocrisia, sem pirotecnia, sem espetáculos de luz,
imagem e som; sem receio de se perder votos, sem desvios para temas de menor
importância, sem ridicularizar ou menosprezar a opinião do outro, sem 0800xxx
para dizer se concorda ou 0800yyy para dizer se não concorda, sem maniqueísmos,
mas sim com a honestidade intelectual que o tema merece.
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Enquanto isso, que seja
respeitada imediatamente toda e qualquer decisão consciente e informada que um
cidadão brasileiro tome a respeito do(s) tratamento(s) que quer ou não quer
receber, caso se encontre em estado terminal ou de agonia, ainda que não
concordemos com a aludida decisão.
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Caso a sua decisão o
leve à morte, ainda que tempos antes do que seria a chamada “morte natural”,
respeitemos o seu direito de não querer uma “morte natural”.
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Encerro com Alberto
Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa e um trecho do poema
“Infelicidade”.
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“...e quando se vai morrer,
lembrar-se de que o dia morre, e que o poente é belo e é bela a noite que fica.
assim é e assim seja”.
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NOTAS
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1 -
Ley de derechos y
garantias de la dignidade de la persona en el proceso de la muerte.
Disponível em http://www.boe.es/boe/dias/2010/05/25/pdfs/BOE-A-2010-8326.pdf,
acesso em 29 de junho de 2013.
.
2 - MARTINEZ, Fernando
Rey. Que significa en el ordenamento español el derecho a vivir con dignidad
el proceso de la muerte? Revista de la Faculdad de Derecho PUCP, n. 69,
2012, págs. 133-149, Disponível em http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/derechopucp/article/view/4270/4242,
acesso em 29 de junho de 2013.
.
3 - Terminalidade
e autonomia: uma abordagem do testamento vital no Direito brasileiro.
In. PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena
(org.). Vida, Morte e Dignidade Humana,
GZ Editora, Rio de Janeiro, 2010, págs. 57-82.
.
4 - Terminalidade
e autonomia: uma abordagem do testamento vital no Direito brasileiro. In.
PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena
(org.). Vida, Morte e Dignidade Humana,
GZ Editora, Rio de Janeiro, 2010, págs. 57-82.
.
5
- Códigos
de Ética e questões de final de vida: uma leitura ética comparada.
Disponível em http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/artigo2.htm, acesso em
29/06/2013.
.
6
- LIPPMANN, Ernesto. Testamento Vital – o direito à dignidade.
Editora Matrix. São Paulo, 2013, págs. 17-21
.
7 - Código de Ética Médica disponível em
http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra_5.asp, acesso em 29 de junho
de 2013.
.
8
- LIPPMAN, Ernesto. Op. Cit. Pág. 37.
.
9
- Ley
de derechos y garantias de la dignidade de la persona en el proceso de la
muerte. Disponível em
http://www.boe.es/boe/dias/2010/05/25/pdfs/BOE-A-2010-8326.pdf, acesso em 29 de
junho de 2013 - Artigo 11.
.
10
- http://www.government.nl/issues/euthanasia/euthanasia-assisted-suicide-and-non-resuscitation-on-request,
acesso em 29/06/2013.
.
11
-
http://new.pensamientopenal.com.ar/sites/default/files/2012/07/codigos01.pdf,
acesso em 29/06/2013.
.
12 -
HIRSCHHEIMER, Mário Roberto; CONSTANTINO, Clóvis Francisco; OSELKA, Gabriel
Wolf. Consentimento Informado no
Atendimento Pediátrico. Revista Paulista de Pediatria, vol. 28, n. 02, São
Paulo, Junho de 2012. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-05822010000200001&script=sci_arttext,
acesso em 29 de junho de 2013.
.
13
- In. Proibições, Crenças e Liberdade: O Direito à Vida, a Eutanásia e o
Aborto. Lumen Juris Editora, Rio de Janeiro, 2009, pág. 15.
.
14
- KARAM, Maria Lúcia. Op. Cit. Loc. Cit.
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