RECURSO ESPECIAL Nº 1.693.718 - RJ (2017/0209642-3) RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE RECORRENTE : LIGIA CRISTINA MELLO MONTEIRO ADVOGADOS : CRISTIANE DE MEDEIROS BRITO CHAVES FROTA - RJ085056 SORAYA RIBAS SAMPAIO BARROS - RJ146178 PAULA ALEXANDRA MALGRAND PRINCIPE PESSOA - RJ022911 RECORRIDO : CARMEN SILVIA MONTEIRO TROIS RECORRIDO : DENISE NAZARE BASTOS MONTEIRO ADVOGADOS : RODRIGO MARINHO CRESPO - RJ135204 ANTONIO VANDERLER DE LIMA - RJ035211 THIAGO AMORIM RODRIGUES - RJ183823 RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ORDINÁRIA. 1. DISPOSIÇÃO DO PRÓPRIO CORPO PARA DEPOIS DA MORTE. CRIOGENIA. VONTADE DO FALECIDO NÃO CONFIRMADA PELAS PROVAS DOS AUTOS. SÚMULA 7 DO STJ. 2. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. DECISÃO Trata-se de recurso especial interposto por Lígia Cristina Mello Monteiro, com base no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro assim ementado (e-STJ, fls. 722-723): EMBARGOS INFRINGENTES CRIOGENIA ANALOGIA LEI Nº 6.015 DECLARAÇÃO DE VONTADE INEXISTÊNCIA CHANCE DE CURA AUSÊNCIA DE INDÍCIOS FORMA E LOCAL DE SEPULTAMENTO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. I- O direito de dispor do corpo após a morte é um direito da personalidade, e por isto inerente a seu titular. II- O direito não pode ficar alheio aos avanços da ciência, a se permitir a disposição do corpo de forma diversa das usuais e típicas. III- Criogenia ou criopreservação consistente na preservação de cadáveres humanos em baixas temperaturas para eventual e futura reanimação e insere-se dentre os avanços científicos que deram nova roupagem a ciência e medicina, rompendo com antigos paradigmas sociais, religiosos e morais. (Apelação Cível n. 0057606-61.2012.8.19.0001, Rel. Des. Flávia Resende, pág. 507/525) IV- Inexistindo regulamentação quanto a outras formas de sepultamento, deve-se aplicar, por analogia, a norma da Lei nº 6.015, que permite a cremação, mediante autorização expressa da pessoa interessada. V- Impossibilidade de se substituir a manifestação de vontade do falecido, pela vontade de uma de suas filhas. Caráter personalíssimo do direito de dispor sobre o corpo, após a morte. VI Situação fática onde há incerteza quanto a real vontade do falecido, em razão das sequelas de um AVC. VII - Total ausência de resultados favoráveis com o procedimento de criogenia. Princípio da dignidade humana que deve ser observado, assim como a segurança jurídica das relações subsequentes, que acentua a responsabilidade de se conferir o destino dado ao corpo após a morte. VIII- Razoabilidade que se aplica quanto ao local do sepultamento. Parcial acolhimento dos embargos infringentes. Não foram opostos embargos de declaração. Nas razões do apelo extremo (e-STJ, fls. 957-984), a recorrente aponta ofensa aos arts. 4° da LINDB; 14, § 2°, do CC; e 77 da Lei n. 6.105/1973. Em síntese, sustenta que a última vontade de seu pai, o Sr. Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro , era de ser submetido a criogenia após a morte. Argumenta não ser necessário nenhum tipo específico de manifestação de vontade de disposição do próprio corpo para depois da morte, podendo o desejo do de cujus ser perfeitamente aferido pelo testemunho de seus parentes. Alega não ser curial em nossa cultura a realização de disposição de vontade sobre o próprio corpo para depois da morte, razão pela qual o querer do falecido deve ser aquilatado pelo testemunho de parentes próximos, como o da recorrente, filha que conviveu com o Sr. Luiz Felippe por mais de 30 (trinta) anos. Defende que o sepultamento do corpo de seu pai, conforme determinado pelo Tribunal local, violenta a vontade daquele, em franco desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade. Contrarrazões às fls. 1.141-1.146(e-STJ). Admitido o processamento do recurso na origem (e-STJ, fls. 1.148-1.150), ascenderam os autos a esta Corte. Brevemente relatado, decido. A irresignação não merece prosperar. Na origem, Carmen Silvia Monteiro Trois e outra ajuizaram ação ordinária contra Lígia Cristina Mello Monteiro. Em síntese, a exordial tem como escopo impedir a submissão do corpo do Sr. Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro, pai das autoras e da ré, ao procedimento de criogenia e, ainda, determinar o sepultamento dos restos mortais do falecido. A sentença de primeiro grau, confirmando liminar anteriormente concedida, julgou parcialmente procedente o pedido, nos seguintes termos (e-STJ, fl. 91): ISTO POSTO, declaro resolvido o mérito da causa e, na forma do art. 269, I, do CPC, julgo parcialmente procedente o pedido para tomar definitiva a liminar expedida, devendo a ré se abster de trasladar o corpo de Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro para os Estados Unidos da América, devendo ser o mesmo entregue para regular sepultamento no local indicado pelas autoras da ação. Estendo os efeitos da liminar requerida para autorizar o imediato sepultamento do corpo, uma vez que se encontra disponível a documentação necessária, devendo ser expedido ofício para a empresa responsável pelo depósito do corpo, determinando sua liberação. Custas rateadas e honorários compensados, em vista da sucumbência recíproca. Inconformada, a ré - Lígia Cristina Mello Monteiro apelou para o Tribunal de Justiça fluminense, que, por maioria de votos, deu provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa (e-STJ, fls. 533-534): CRIOGENIA. DESTINAÇÃO DE RESTOS MORTAIS. DISPOSIÇÃO DE ULTIMA VONTADE. INEXISTÊNCIA DE TESTAMENTO OU CODICILO. DIREITO DA PERSONALIDADE. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. AUSÊNCIA DE CONSENSO ENTRE AS LITIGANTES. AFETIVIDADE. PROVA DOCUMENTAL ROBUSTA, QUE DEMONSTRA QUE O DE CUJUS DESEJAVA VER O SEU CORPO SUBMETIDO AO PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA. 1. A criogenia ou criopreservação consiste na preservação de cadáveres humanos em baixas temperaturas para eventual e futura reanimação e insere-se dentre os avanços científicos que deram nova roupagem a ciência e medicina, rompendo com antigos paradigmas sociais, religiosos e morais. 2. Disputa acerca da destinação dos restos mortais do pai das litigantes, cujo desate não consiste na unificação da vontade das partes, mas sim na perquirição da real vontade do falecido. 3. Disposição de última vontade do falecido quanto à destinação de seu cadáver após a morte, que se insere dentre os direitos da personalidade constitucionalmente assegurados. Inexistência de testamento ou codicilo que não deve inviabilizar o cumprimento dos desígnios do falecido, sob pena de afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana. Segundo Kant, cada pessoa deve ser tratada como um fim em si e nunca como um simples meio para satisfazer interesses alheios. 4. Em que pese, a solenidade e o conservadorismo do direito sucessório pátrio, são reconhecidas formas excepcionais de testamento, como o particular, nuncupativo, marítimo e aeronáutico que prescindem das formalidades ordinárias e visam impedir que o indivíduo venha a falecer sem fazer prevalecer sua derradeira vontade. 5. Os elementos constantes dos autos, em especial a prova documental, demonstram de forma inequívoca o desejo do falecido de ter o seu corpo congelado após a sua morte. 6. Inafastável a aptidão da parenta mais próxima do falecido, com quem mantinha relação de afeto e confiança incondicionais, conforme demonstrado pelas provas carreadas aos autos, no caso, sua filha Lygia para dizer sobre o melhor destino para os restos mortais do falecido, ou seja, aquele que melhor traduz suas convicções e desejos à época de seu falecimento. Maria Berenice Dias, in Manual das Sucessões, escreve: A Constituição Federal elevou a afetividade à categoria de direito constitucional tutelado, ao afirmar que a família é a base da sociedade e merece especial proteção do Estado (CF 226). Ainda que a transmissão da herança se trate de direito individual, o que fundamenta o direito sucessório nos dias atuais é o afeto. A lei civil faz presumir esses laços de amor quando não são determinados por escolha em disposição de última vontade. (grifamos) 7. Ausência de previsão legal acerca do tema criogenia que, na forma do art. 4º da LICC, autoriza a aplicação analógica das disposições existentes acerca da cremação, para a qual a Lei de Registros Públicos não estabeleceu forma especial para a manifestação de vontade do falecido. Precedentes deste Egrégio Tribunal. 8. Inexistência de paradigma jurisprudencial que não inviabiliza a pretensão diante da ausência de vedação legal e da demonstração de ser esta a disposição de última vontade do falecido. Recurso provido. Irresignadas, as autoras opuseram embargos infringentes, que foram parcialmente acolhidos, nestes termos (e-STJ, fls. 722-723): EMBARGOS INFRINGENTES CRIOGENIA ANALOGIA LEI Nº 6.015 DECLARAÇÃO DE VONTADE INEXISTÊNCIA CHANCE DE CURA AUSÊNCIA DE INDÍCIOS FORMA E LOCAL DE SEPULTAMENTO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. I- O direito de dispor do corpo após a morte é um direito da personalidade, e por isto inerente a seu titular. II- O direito não pode ficar alheio aos avanços da ciência, a se permitir a disposição do corpo de forma diversa das usuais e típicas. III- Criogenia ou criopreservação consistente na preservação de cadáveres humanos em baixas temperaturas para eventual e futura reanimação e insere-se dentre os avanços científicos que deram nova roupagem a ciência e medicina, rompendo com antigos paradigmas sociais, religiosos e morais. (Apelação Cível n. 0057606-61.2012.8.19.0001, Rel. Des. Flávia Resende, pág. 507/525) IV- Inexistindo regulamentação quanto a outras formas de sepultamento, deve-se aplicar, por analogia, a norma da Lei nº 6.015, que permite a cremação, mediante autorização expressa da pessoa interessada. V- Impossibilidade de se substituir a manifestação de vontade do falecido, pela vontade de uma de suas filhas. Caráter personalíssimo do direito de dispor sobre o corpo, após a morte. VI Situação fática onde há incerteza quanto a real vontade do falecido, em razão das sequelas de um AVC. VII - Total ausência de resultados favoráveis com o procedimento de criogenia. Princípio da dignidade humana que deve ser observado, assim como a segurança jurídica das relações subsequentes, que acentua a responsabilidade de se conferir o destino dado ao corpo após a morte. VIII- Razoabilidade que se aplica quanto ao local do sepultamento. Parcial acolhimento dos embargos infringentes. Daí o presente recurso especial interposto por Lígia Cristina Mello Monteiro. O Tribunal de Justiça fluminense, com arrimo no conjunto fático-probatório dos autos, asseverou inexistir prova de que o Sr. Luiz Felippe desejasse ter seu corpo submetido à criogenia após a morte (e-STJ, fls. 730-733): Extrai-se daí que a certeza quanto ao destino desejado pelo Sr. Luiz Felippe só poderia ser aferida por prova inequívoca de que o mesmo conhecia o alcance do congelamento e assim o quisesse, o que, conforme visto acima, não houve, tendo em vista a divergência das declarações pelo mesmo prestadas, numa mesma época. Com mais razão, não se pode admitir seja sua vontade suprida pelo simples consentimento de sua filha, até porque a mesma afirma que o falecido já não mais gozava de suas faculdades mentais plenas face a um AVC sofrido (fls. 596). Logo, não se pode afirmar o desejo de ser submetido à criogenia, sequer tendo sido o próprio a contratar previamente a empresa americana, se de fato celebrou-se um contrato, uma vez que este não veio aos autos. Há sobretudo que se considerar que o Sr. Luiz Felippe, Oficial da FAB e estudioso do assunto, saberia que se tratava de um procedimento inusitado no Brasil e com implicações jurídicas relevantes. Se de fato entendesse o alcance da criogenia, ou ser possível a cura posterior para os males que o levaram à morte, teria deixado orientações expressas a esse respeito, e não, ao contrário, outorgado poderes para que seus bens fossem inventariados e partilhados, pois não se vislumbra a possibilidade de alguém pretender voltar à vida sem um mínimo financeiro que pudesse amparar os gastos a tanto. Aplica-se, portanto, por analogia, o § 2º, do art. 77 da Lei nº 6015/73, cuja finalidade é regular uma nova situação, na qual se exige a prévia manifestação de vontade do interessado, devendo haver prova quanto a esta, o que não ocorre no presente caso, como visto. Também não há como se proceder à substituição da manifestação de vontade, como defende a ré com base em alguns julgados, não só porque inexiste certeza quanto à intenção do congelamento, como do alcance real deste procedimento, visto que a ré afirma que o desejo de seu pai era realmente de que o avanço da ciência permitisse a sua eventual recuperação (fls. 39). Com efeito, o parecer jurídico juntado pela ré às fls. 471/497 deixa claro que a criônica tem como objetivo a reanimação no futuro e, para tanto, os médicos utilizam máquinas que mantêm a circulação do sangue e a oxigenação do corpo e, após mantê-lo no frio, o sangue é retirado e inserido o líquido crioprotetor, sendo em seguida direcionado para resfriamento por cerca de três horas para assegurar que todas as partes do corpo serão congeladas por igual (fls. 475). [...] Logo, há que se trilhar, aqui, pelo caminho da responsabilidade, observando o alto gasto do procedimento, a comprometer as finanças do falecido, sem que efeito concreto algum retomada da vida ocorra, desnaturando a própria vontade do falecido, na visão de uma filha que aqui figura como ré. Dessa forma, inexistindo manifestação expressa de vontade do Sr. Luiz Felippe quanto ao congelamento de seu corpo após a morte; inexistindo indícios de chance de cura e de uma vida digna, não há como autorizar o translado do corpo do Sr. Luiz Felipe para ser submetido ao procedimento da criogenia, devendo prevalecer o enterro como forma de sepultamento e destino dado ao corpo após a morte. Desse modo, o acolhimento do inconformismo, segundo as alegações vertidas nas razões do especial, demanda o reexame de provas, situação vedada pela Súmula 7 do STJ. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial. Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, majoro os honorários em favor dos advogados da parte recorrida em R$ 1.000,00 (mil reais). Publique-se. Brasília (DF), 29 de setembro de 2017. MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator
sexta-feira, 1 de março de 2019
O STJ E O CASO DA CRIOGENIA DE UM CADÁVER
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