sexta-feira, 19 de junho de 2015

A Lei 11.441/07 e as separações e divórcios consensuais judiciais. Necessidade de julgamento de mérito - Publicado no site do IBDFAM em 02/01/2008

Com a edição da Lei 11.441, de 05 de janeiro de 2007, instituiu-se no Direito brasileiro um procedimento cartorial para a separação e o divórcio, viável desde que as partes estejam de pleno acordo sobre todos os termos ligados à divisão do patrimônio, eventuais alimentos entre os ex-cônjuges e restabelecimento ou não dos nomes de solteiros, respeitando-se os prazos legais previstos no Código Civil e não havendo filhos menores ou maiores incapazes.

Todavia, embora o texto legal seja bem claro ao facultar (ao invés de obrigar) às partes interessadas o manejo desta via administrativa, instalou-se entre a doutrina mais abalizada um dissenso a respeito deste assunto.

Como se sabe, de um lado, alguns doutrinadores têm entendido pela possibilidade de as partes optarem pela via que lhes pareça mais adequada; por outro lado, certos juristas pregam que não seria mais possível ingressar em Juízo com ações de separação e divórcio consensuais, dotadas das características acima mencionadas.

Os argumentos favoráveis às duas teses já são bem conhecidos e sua análise pormenorizada será adiada para uma próxima oportunidade. Neste momento, limitar-me-ei a dizer que os defensores da facultatividade do uso da via cartorial, tais como EZEQUIEL GOMES, FRANCISCO CAHALI, CHRISTIANO CASSETARI e FERNANDA e FLÁVIO TARTUCE (2007), com os quais estou de pleno acordo, trazem em seu favor, em apertada síntese, por exemplo:

  • a) a interpretação literal do texto da lei (in claris cessat intepretatio), argumento que se liga também à própria vontade do legislador, conforme a justificativa do Projeto da Lei, de autoria do Senador César Borges, que afirmava categoricamente não ser sua intenção suprimir a possibilidade do uso das vias judiciais, interpretação esta que foi adotada pela Resolução n. 35 do Conselho Nacional de Justiça;
  • b) a inconstitucionalidade de excluir estes casos da apreciação do Poder Judiciário, conforme leitura do inciso XXXV, do art. 5º da Constituição Federal;
  • c) a inexistência de instância administrativa obrigatória, como lembrado pelo Dr. EZEQUIEL MORAIS (2007);
  • d) o fato de o cidadão poder optar pelo procedimento judicial para preservar o segredo de justiça ou para que possa executar posteriormente os alimentos pelo art. 733 do CPC, ou ainda para dar mais segurança à uma eventual renúncia aos alimentos; apenas para citar brevemente três assuntos que, sob o pálio da nova Lei, permanecem em discussão;
  • e) ou simplesmente, o fato de o cidadão desejar buscar o Poder Judiciário porque, dependendo do patrimônio envolvido e das tabelas de custas cartorária e judicial, esta se mostra a opção menos onerosa.

 Já os partidários da segunda tese, tais como CRISTIANO CHAVES DE FARIA, ALEXANDRE CÂMARA, ANDRÉ FRANCO e MARCOS CATALAN (2007), baseiam sua excelente e tentadora argumentação no fato de que, com a edição da nova Lei, as partes que procurarem o Poder Judiciário, apresentando uma hipótese de separação ou divórcio consensuais, amoldadas perfeitamente aos pré-requisitos contidos no texto legal, serão carecedoras de ação, por falta de uma das condições da ação, qual seja o interesse de agir.

"Nessa ordem de idéias, a utilização da via judicial para a dissolução do casamento (por separação ou divórcio) restringe-se às hipóteses de conflito de interesses entre as partes ou de existência de interesse de incapaz. Fora disso, restará, por óbvio, obstada a esfera judicial, sob pena de esvaziamento e inutilidade do novo regramento da matéria. Por tudo isso, se vier a ser proposta uma ação de separação ou divórcio consensuais, deve o juiz extinguir o feito sem resolução de mérito (CPC, art. 267, VI), por carência de ação (falta de interesse de agir)". Esta é a opinião do professor CRISTIANO CHAVES DE FARIA (2007), a quem cito por todos.

  Destaque-se que o autor acima citado é favorável, inclusive, ao encerramento imediato das ações judiciais que estejam em curso, para que as partes interessadas sejam remetidas à via cartorial. Tal argumento, que motivou a redação destas breves linhas, encontra-se altamente coerente, do ponto de vista do atual estado da ciência processual brasileira, pois como salienta MARCOS DESTEFENNI (2006), boa parte da doutrina admite a análise das condições da ação em face de circunstâncias supervenientes ao momento da propositura da ação. Nesse caso, pode-se falar em carência da ação superveniente, ensejando a extinção do processo sem julgamento do mérito, mesmo que as condições da ação estivessem presentes no momento de sua propositura.

Todavia, entendo e tenho defendido de forma ferrenha que as separações e divórcios consensuais submetidas ao crivo do Poder Judiciário devem obrigatoriamente ser julgados com mérito, sendo decretada por sentença a separação ou o divórcio e homologado o acordo entre as partes, mesmo que o caso sob exame amolde-se perfeitamente aos pré-requisitos trazidos pelo novo texto legal.

Isto se deve, em parte, aos argumentos favoráveis à tese da facultatividade do uso do novo procedimento, argumentos estes elencados acima e desenvolvidos com brilhantismo pelos autores já mencionados.

Mas há outro argumento, este de ordem processual, que acredito ser merecedor de especial atenção, qual seja a aplicação aos processos em trâmite do artigo 1.109 do Código de Processo Civil brasileiro.

A lei em comento, como se sabe, acrescentou um novo artigo (1.124-A) ao capítulo III (Da Separação Consensual), do Título II (Dos Procedimentos Especiais de Jurisdição Voluntária), do Livro IV do CPC (Dos Procedimentos Especiais). Desta forma, o procedimento especial de separação consensual judicial continua previsto no Art. 1.120 e seguintes, vale dizer, continua sendo um Procedimento Especial de Jurisdição Voluntária.

O Título que trata destes "Procedimentos Especiais de Jurisdição Voluntária" conta com um primeiro capítulo, que trata das "Disposições Gerais", no qual está inserido o dispositivo, que assim se apresenta: Art. 1.109. O juiz decidirá o pedido no prazo de 10 (dez) dias; não é porém, obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna.

Trata-se de regra que claramente autoriza ao Magistrado um julgamento por eqüidade, segundo a doutrina mais abalizada.

JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO, em seus Comentários ao CPC (1983), lembra-nos que este dispositivo foi transplantado quase literalmente do Direito Português, utilizando-se das lições do jurista JOSÉ ALBERTO DOS REIS para explicar sua aplicação: "Um julgamento pode inspirar-se em duas orientações ou dois critérios diferentes: critério de legalidade, critério de eqüidade. No primeiro caso, o juiz tem de aplicar aos fatos da causa o direito constituído; tem de julgar segundo as normas jurídicas que se ajustam à espécie respectiva, ainda que, em sua consciência, entenda que a verdadeira justiça exigiria outra solução. No segundo caso, o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem a liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais eqüitativa. É exatamente o que, para os processos de jurisdição voluntária, determina o art. 1449" (Nota, a numeração refere-se ao artigo do Código de Processo Português).

Outra não é a opinião do professor VICENTE GRECO FILHO (1997), que considera a regra do art. 1.109, uma espécie de julgamento por eqüidade e que dá ao Juiz  "maior liberdade de atuação na aplicação da regra legal".

Também devem ser mencionadas as lições lição de WILSON GOMES DE MENEZES, citado por JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO (1983): "Muitas vezes a norma legal embate-se com o interesse do titular do direito, razão pela qual o legislador concedeu ao juiz um enorme arbítrio para, com equilíbrio e bom senso, suprir as deficiências da lei, adaptando-a à realidade do caso concreto, adotando a providência mais convincente para o interessado".

Portanto, não pode restar a menor dúvida que o juiz ao se deparar com um processo de separação ou divórcio consensual, pode julgar por eqüidade. A lei processual em vigor admite tal hipótese francamente, pela leitura do artigo 1.109 do CPC.

 Ou seja, ainda que o Magistrado seja partidário da tese que proclama a obrigatoriedade do manejo da via cartorial, a partir da edição da Lei 11.441/07 (embora a letra da lei jamais diga isso), não pode este negar que tem diante de si um processo, digamos, "pronto" para ser julgado. Geralmente, as partes já debateram as cláusulas da separação, já contrataram um ou mais advogados, arcaram com as custas, juntaram aos autos todos os documentos, certidões, testemunhos e outras providências que se façam necessárias.

Na verdade, se o processo demora para chegar às mãos do juiz, isto se dá por aspectos burocráticos ligados à encadernação dos autos, numeração das páginas e mais um sem número de atos do cartório da Vara, cuja duração varia de cidade para cidade. Encerrar um feito desta natureza, com julgamento de mérito e decretação da separação ou divórcio, com o devido respeito às opiniões em sentido contrário, parece-me tarefa extremamente simples e rápida.

Já encerrar o processo sem julgamento de mérito remetendo as partes para novas diligências e gastos, agora na via cartorial, é, data venia, medida injusta e que, no meu entender vai de encontro ao espírito da lei, às garantias constitucionais processuais, e ainda, fere de morte as intenções do legislador que importou do Direito Português o nosso artigo 1.109 do CPC.

Ademais, tal decisão abriria um paradoxo de difícil resolução. A nova lei falou claramente em facultatividade, ao usar o tempo verbal "pode"; os dignos membros do Conselho Nacional de Justiça, em reunião semanas após a edição da lei, confirmaram este entendimento; O juiz então, ao aplicar a lei, poderia julgar contra texto expresso?

No meu entender, jamais. Porém mesmo que o julgador comungue da tese de que a letra da lei não disse o que queria dizer, ou que disse errado, deverá aplicar aos casos em andamento quando da edição do novo texto, ou aos que forem propostos posteriormente, a regra do artigo 1.109 do CPC, julgando o mérito das ações, homologando os acordos de separação e divórcio que chegarem à sua mesa.

Um outro e último argumento para a utilização do aludido dispositivo, seria considerarmos que o legislador, ao fechar o texto da Lei 11.441/07, omitiu-se ao não estabelecer uma vacatio legis e também deixou de editar uma regra específica para regular as causas em trâmite, como fez no artigo 41 da Lei do Divórcio.

É certo que regras de transição seriam importantes no caso em tela, e, igualmente de suma importância seria um prazo para que a sociedade, os cartórios e os juristas debatessem o novo documento legal, por ser lei que imediatamente atingiu dezenas de milhares de pessoas, além de ter sido editada no começo do mês de Janeiro, sabidamente um período de férias e de pouca movimentação nos escritórios e Tribunais.

Portanto, se o legislador pecou por descuido, descumprindo claramente dispositivos da Lei Complementar 95/98, o cidadão não poderá ser penalizado por esta verdadeira cláusula de dureza, defendida por alguns renomados juristas, pelo que neste caso, propugnamos também por um julgamento por eqüidade, tendo em mente os escritos inesquecíveis de CARLOS MAXIMILIANO (1965): "Até os mais ferrenhos tradicionalistas admitem o recurso à Eqüidade ao preencher as lacunas do Direito, positivo ou consuetudinário. Para os contemporâneos, deve a mesma ser invocada não só em casos de silêncio da lei; pois também constitui precioso auxiliar da Hermenêutica: suaviza a dureza das disposições, insinua uma solução mais tolerante, benigna, humana. Às vezes até nem se alude explicitamente a ela no aresto; porém o raciocínio expendido, embora revestido de roupagens lógicas, baseia-se, com a maior evidência, no grande princípio universal - jus est ars boni et aequi".


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  
CAHALI, Francisco José; FILHO, Antonio Herrance; ROSA, Karin Regina Rick; FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. "Escrituras Públicas - Separação, Divórcio, Inventário e Partilha Consensuais". Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007, págs. 98 e 99.

CASSETARI, Christiano. "Separação, Divórcio e Inventário por Escritura Pública". Editora Método, São Paulo, 2007, págs. 23 e seguintes.

DESTEFENNI, Marcos. "Curso de Direito Processual Civil, Volume I". Editora Saraiva, São Paulo, 2006, págs. 104 e 105.

FARIAS, Cristiano Chaves. "O novo procedimento da separação e do divórcio - comentários e análise da Lei no. 11.441/07". Lumen Juris Editora, Rio de Janeiro, 2007, capítulo IV.

FILHO, José Olympio de Castro. "Comentários ao Código de Processo Civil, volume X". Editora Forense, 3ª. Edição, Rio de Janeiro, 1983, págs. 27 a 39.

FILHO, Vicente Greco. "Direito Processual Civil brasileiro, Volume 3". Editora Saraiva, 12ª. Edição, São Paulo, 1997, pág.272.

FRANCO, André; CATALAN, Marcos. "Separação e Divórcio na esfera extrajudicial - faculdade ou dever das partes?".   In. COLTRO, Antonio Carlos Mathias; DELGADO, Mário Luiz (coordenadores). "Separação, Divórcio, Partilhas e Inventários Extrajudiciais". Editora Método. 2007.

MAXIMILIANO, Carlos. "Hermenêutica e Aplicação do Direito". 8ª. Edição. Livraria e Editora Freitas Bastos, Rio de Janeiro e São Paulo, 1965, pág. 186.

MORAIS, Ezequiel. "A facultatividade do procedimento extrajudicial: breves considerações sobre o novo art. 1.124-A do CPC". In. COLTRO, Antonio Carlos Mathias; DELGADO, Mário Luiz (coordenadores). "Separação, Divórcio, Partilhas e Inventários Extrajudiciais". Editora Método. 2007.

TARTUCE, Fernanda; TARTUCE, Flávio. "Lei no. 11.441/07: Diálogos entre Direito Civil e Direito Processual Civil quanto à separação e ao divórcio extrajudiciais". In. Revista Brasileira de Direito de Família, Ano IX, no. 41, Abr-Maio 2007. IBDFAM e Editora Síntese. Belo Horizonte e São Paulo, págs. 157 e seguintes.

Autor: Cristian Fetter Mold

Nenhum comentário: