GUARDA COMPARTILHADA
HÁ LUZES NO FINAL DO TÚNEL?
Cristian Fetter Mold
Nos últimos anos, temos
assistido com atenção especial a uma mudança expressiva no tratamento dado ao
instituto da “proteção da pessoa dos filhos”, Capítulo do Código Civil
destinado às disposições sobre guarda e direito de visitas dos filhos após a
dissolução do vínculo conjugal ou da união estável.
Tais dispositivos constavam já
do Código de 1916 (arts. 325 et seq), tendo sido modernizados no Código
de 2002 (arts. 1583 et seq) e vindo a sofrer recentes alterações,
através das Leis nos 11.698/08 (institui a Guarda Compartilhada) e 12.398/11
(direito de visitas dos avós), e da recentíssima Lei nº 13.058/14, cujo Preâmbulo
indica o objetivo de “estabelecer o significado da expressão guarda
compartilhada e dispor sobre sua aplicação”.
Não há dúvidas de que o
sistema anterior era insuficiente para atender às alterações ocorridas no
âmbito da organização familiar brasileira, pois baseado na premissa de que
somente deveria existir um guardião (de preferência a mãe, desde que não
culpada pela separação), com a primazia das decisões mais importantes da
vida dos filhos, cabendo ao não guardião – frequentemente com deveres
alimentares – pouca participação na criação e educação, uma vez afastado pouco
a pouco da rotina diária de seus filhos, por um sistema de visitas quase sempre
modesto.
Curioso ressaltar que, mesmo
sob a égide do Código de 1916, regra repetida no Código de 2002 (arts. 381 e 1.632,
respectivamente), sempre pareceu-nos que a intenção do legislador era manter em
equanimidade o exercício do poder familiar dos pais sobre os filhos, mesmo após
a dissolução da relação.
Porém, a interpretação desses
dispositivos sempre tendeu para uma oposição entre guarda e direito de visitas,
tratando-se a guarda como “um direito subjetivo a ser atribuído a um dos
genitores na separação, em contrapartida ao direito de visita deferido a quem
não fosse outorgado esta posição de vantagem”, acabando por “desvirtuar o
instituto da guarda, retirando-lhe a função primordial de salvaguardar o melhor
interesse da criança ou do adolescente”1.
Como se sabe, o direito de
visitas/convívio foi sendo ampliado ao longo dos tempos, passando-se à
possibilidade de o chamado “não guardião” ter acesso aos filhos em dias de semana,
às vezes com pernoite, ampliando-se o conceito de “final de semana” para que as
visitas já começassem na saída da escola, às sextas-feiras, terminando na porta
da escola, na segunda-feira subsequente, chegando-se algumas vezes até mesmo à
divisão “salomônica” do convívio (50% x 50%), algo muitas vezes não
recomendado, a depender da idade e maturidade das crianças ou adolescentes
envolvidos.
Importantíssimo, aliás, o
desenvolvimento destas “visitas ampliadas” – inclusive com a preocupação de
envolver nos debates a figura dos avós e outros parentes, além de descortinar
as discussões (ainda em andamento) sobre o papel dos padrastos e madrastas
nesta dinâmica –, sendo hoje reconhecidas como importantes aliadas na prevenção
dos laços de afeto entre pais e filhos, e também na prevenção da sempre temida alienação
parental.
Todavia, remanescia entre os
intérpretes do texto legal a incômoda ideia de que o guardião teria a primazia
das decisões sobre os principais aspectos da vida dos filhos, como se o
conceito de “guarda” fosse superior ao conceito de “poder familiar”.
Com isso, passou-se a defender
que o modelo de guarda unilateral, como alternativa única nos casos de
divórcio/dissolução de união estável, não atenderia ao melhor interesse das
crianças. Era necessária a criação de um novo modelo que acabasse com a chamada
“tirania do guardião”.
Com a edição da Lei nº 11.698/08,
foi criado um novo modelo denominado “guarda compartilhada”, através do qual os
pais, mesmo após a dissolução da união estável ou conjugal, continuavam a se
responsabilizar conjuntamente pela criação e educação dos filhos.
Embora saudada como uma
verdadeira “panaceia” por alguns, o legislador mandava aplicar o modelo “sempre
que possível”, o que levou, em geral, doutrina e jurisprudência à interpretação
de que o novo sistema funcionaria sempre que houvesse um mínimo de harmonia e
respeito entre os integrantes do ex-casal.
Além disso, observou-se também
a confusão terminológica entre “guarda compartilhada” e “guarda alternada”, bem
como pleitos judiciais no sentido de aliar a adoção da guarda compartilhada com
a dispensa do pagamento de pensão alimentícia aos filhos, dentre outros
aspectos polêmicos, o que demonstrava a necessidade de aperfeiçoamento, não só
do texto legal, como de sua interpretação.
Ademais, uma mudança de
tamanho impacto não poderia entrar nos corações e mentes das famílias
brasileiras de uma hora para outra, razão pela qual o modelo de guarda
compartilhada não foi aplicado de pronto na maioria dos casos, como
alguns esperavam.
De qualquer forma, ao menos em
um primeiro momento, a mudança teve o inquestionável mérito de provocar um novo
olhar sobre o assunto, trazendo à baila também o debate sobre os “papéis” do
pai e da mãe no Brasil de hoje, além da necessária discussão sobre situações
correlatas, tais como a necessidade, ou não, de se ter um “lar de referência” (primary
residence), a viabilidade de se adotar sistemas de “guardas” e “visitas”
diferenciadas para filhos em idades distintas, a possibilidade de um real
compartilhamento das despesas com os filhos, qual o melhor sistema para pais
que vivessem em cidades ou países diferentes, dentre outros, mostrando que
havia, de fato, luzes no final deste túnel.
Com a edição da Lei nº 13.058/14,
todavia, parece que tais luzes ficaram um pouco mais distantes. Isto
porque, em primeiro lugar, apesar do seu Preâmbulo indicar que o novo texto
legal tem por objeto “estabelecer o significado da expressão ‘guarda
compartilhada’ e dispor sobre sua aplicação”, isto na verdade não acontece.
Basta um mero deitar de olhos
sobre as principais mudanças da nova Lei para que verifiquemos que os objetivos
aparentes do legislador foram bem distintos, trazendo muitas alterações também
para o sistema de guarda unilateral, senão vejamos.
A nova lei:
· estabelece que, na guarda compartilhada, o “tempo
de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e
com o pai”, algo que na prática já vinha acontecendo com a ampliação do sistema
de visitas;
· revoga os incisos do art. 1.583, os quais traziam
os critérios para o deferimento da guarda unilateral, na hipótese de sua
aplicação. Revogação desnecessária em nossa opinião, uma vez que este modelo de
guarda permanece em nosso ordenamento como uma alternativa;
· determina que na “guarda compartilhada” a cidade
considerada base de moradia dos filhos será aquela que “melhor atender aos
interesses dos filhos”, dispositivo em nosso entender escrito de forma errônea,
uma vez que, em qualquer caso em que haja discussão sobre onde as crianças
residirão, o juiz há de decidir segundo os melhores interesses das crianças,
independentemente do sistema de guarda adotado;
· introduz em nosso ordenamento a possibilidade de o
não guardião pleitear “prestação de contas” em alimentos, instituto discutido
há décadas e que, na nossa opinião, terá de ser aplicado com muita cautela e só
em situações especiais2;
· e, finalmente, o polêmico dispositivo que manda
aplicar a guarda compartilhada, mesmo que haja desacordo entre os pais. Neste
ponto, concordamos com o autor que entende que a imposição da guarda
compartilhada no dissenso pode ferir uma série de princípios norteadores da
proteção aos melhores interesses das crianças3.
Portanto, o novo documento
legal traz mais dúvidas do que certezas, sendo certo que sua melhor interpretação
pela doutrina e pelos tribunais se impõe tendo sempre como norte – e como luz
no fim do túnel – o melhor interesse das crianças.
Buscando, enfim, amparo na
doutrina canadense, sendo possível partirmos desta constatação para nossos
estudos futuros, “não há presunções, nem de fato e nem de direito, em favor da
guarda unilateral ou da guarda conjunta; cada caso deverá ser determinado em
suas circunstâncias únicas”.
Destacam ainda os autores um
julgamento da Suprema Corte da Nova Escócia, em que foram considerados como
fatores importantes para determinar se os melhores interesses da criança seriam
atendidos por um arranjo parental compartilhado, dentre outros: o interesse
de cada genitor em compartilhar a tomada de decisões; a vontade de cada
genitor em compartilhar as tarefas parentais; e a vontade dos
genitores em buscar ajuda profissional quanto às questões da parentalidade4.
Tais aspectos são observados
em todos os casos? Evidente que não. E não é uma sentença que modificará o
jeito de ser de cada um. Esta pode até resolver o processo, mas não colocará um
ponto final no conflito, e todos sabem quem sofrerá as consequências.
As luzes continuam no final do
túnel. Sigamos em frente.
CRISTIAN FETTER MOLD é Advogado. Professor de Direito de Família e Sucessões
do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e da Escola Superior da
Advocacia (ESA OAB-DF). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAM) e da Associação Advogados pela Liberdade de Orientação Sexual e
Identidade de Gênero (ADLIB).
NOTAS
1 TEPEDINO, Gustavo. A
disciplina da guarda e a autoridade parental na ordem civil-constitucional.
Disponível em
.
Acesso em: 04.02.15.
2 Cf.
CASSETARI, Christiano. Prestação de contas em alimentos.
Posição favorável. Disponível em: .
Acesso em: 04.02.15.
3 Cf. REZENDE, Fernando
Augusto Chacha de. Guarda compartilhada impositiva no dissenso não pode
ferir dignidade da pessoa humana. Disponível em:
.
Acesso
em: 04.02.15.
4 PAYNE, Julien; PAYNE, Marilyn. Canadian Family
Law. 5. ed. Toronto-Canadá: Irwin Law,
2013. (Livre tradução.)