STJ - A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão
que garantiu, dentro de uma união estável homoafetiva, a adoção
unilateral de filha concebida por inseminação artificial, para que ambas
as companheiras passem a compartilhar a condição de mãe da adotanda. O
colegiado, na totalidade de seus votos, negou o recurso do Ministério
Público de São Paulo, que pretendia reformar esse entendimento.
Na
primeira instância, a mulher que pretendia adotar a filha gerada pela
companheira obteve sentença favorável. O Ministério Público recorreu,
mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve a sentença por
considerar que, à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente e da
Constituição Federal, a adoção é vantajosa para a criança e permite “o
exercício digno dos direitos e deveres decorrentes da instituição
familiar”.
“Não importa se a relação é pouco comum, nem por isso
é menos estruturada que a integrada por pessoas de sexos distintos”,
afirmou o TJSP, observando que “a prova oral e documental produzida
durante a instrução revela que, realmente, a relação familiar se
enriqueceu e seus componentes vivem felizes, em harmonia”.
Em
recurso ao STJ, o MP sustentou que seria juridicamente impossível a
adoção de criança ou adolescente por duas pessoas do mesmo sexo. Afirmou
que “o instituto da adoção guarda perfeita simetria com a filiação
natural, pressupondo que o adotando, tanto quanto o filho biológico,
seja fruto da união de um homem e uma mulher”.
A companheira
adotante afirmou a anuência da mãe biológica com o pedido de adoção,
alegando a estabilidade da relação homoafetiva que mantém com ela e a
existência de ganhos para a adotanda.
Impasses legais
Em
seu voto, a relatora, ministra Nancy Andrighi, disse ser importante
levar em conta que, conforme consta do processo, a inseminação
artificial (por doador desconhecido) foi fruto de planejamento das duas
companheiras, que já viviam em união estável.
A ministra
ressaltou que a situação em julgamento começa a fazer parte do cotidiano
das relações homoafetivas e merece, dessa forma, uma apreciação
criteriosa.
“Se não equalizada convenientemente, pode gerar – em
caso de óbito do genitor biológico – impasses legais, notadamente no
que toca à guarda dos menores, ou ainda discussões de cunho patrimonial,
com graves consequências para a prole”, afirmou a ministra.
Segundo
a relatora, não surpreende – nem pode ser tomada como entrave técnico
ao pedido de adoção – a circunstância de a união estável envolver uma
relação homoafetiva, porque esta, como já consolidado na jurisprudência
brasileira, não se distingue, em termos legais, da união estável
heteroafetiva.
Para ela, o argumento do MP de São Paulo – de que
o pedido de adoção seria juridicamente impossível, por envolver relação
homossexual – impediria não só a adoção unilateral, como no caso em
julgamento, mas qualquer adoção conjunta por pares homossexuais.
Equiparados
No
entanto, afirmou a relatora, em maio de 2011 o Supremo Tribunal Federal
consolidou a tendência jurisprudencial no sentido de dar à união
homossexual os mesmos efeitos jurídicos da união estável entre pessoas
de sexo diferente.
“A plena equiparação das uniões estáveis
homoafetivas, às uniões estáveis heteroafetivas trouxe como corolário a
extensão automática, àquelas, das prerrogativas já outorgadas aos
companheiros dentro de uma união estável tradicional”, observou a
ministra.
De acordo com Nancy Andrighi, o ordenamento jurídico
brasileiro não condiciona o pleno exercício da cidadania a determinada
orientação sexual das pessoas: “Se determinada situação é possível ao
extrato heterossexual da população brasileira, também o é à fração
homossexual, assexual ou transexual, e a todos os demais grupos
representativos de minorias de qualquer natureza.”
Vantagens para o menor
De
acordo com a ministra Nancy Andrighi, a existência ou não de vantagens
para o adotando, em um processo de adoção, é o elemento subjetivo de
maior importância na definição da viabilidade do pedido. Segundo ela, o
adotando é “o objeto primário da proteção legal”, e toda a discussão do
caso deve levar em conta a “primazia do melhor interesse do menor sobre
qualquer outra condição ou direito das partes envolvidas”.
De
acordo com a relatora, o recurso do MP se apoia fundamentalmente na
opção sexual da adotante para apontar os inconvenientes da adoção.
Porém, afirmou a ministra, “a homossexualidade diz respeito, tão só, à
opção sexual. A parentalidade, de outro turno, com aquela não se
confunde, pois trata das relações entre pais/mães e filhos.”
A
ministra considera que merece acolhida a vontade das companheiras, mesmo
porque é fato que o nascimento da criança ocorreu por meio de acordo
mútuo entre a mãe biológica e a adotante, e tal como ocorre em geral nas
reproduções naturais ou assistidas, onde os partícipes desejam a
reprodução e se comprometem com o fruto concebido e nascido, também
nesse caso deve persistir o comprometimento do casal com a nova pessoa.
“Evidencia-se
uma intolerável incongruência com esse viés de pensamento negar o
expresso desejo dos atores responsáveis pela concepção em se
responsabilizar legalmente pela prole, fruto do duplo desejo de formar
uma família”, disse a relatora.
Duas mães
A
ministra Nancy Andrighi também questionou o argumento do MP de São
Paulo a respeito do “constrangimento” que seria enfrentado pela adotanda
em razão de apresentar, em seus documentos, “a inusitada condição de
filha de duas mulheres”.
Na opinião da relatora, certos
elementos da situação podem mesmo gerar desconforto para a adotanda,
“que passará a registrar duas mães, sendo essa distinção reproduzida
perenemente, toda vez que for gerar documentação nova”. Porém, “essa
diferença persistiria mesmo se não houvesse a adoção, pois haveria
maternidade singular no registro de nascimento, que igualmente poderia
dar ensejo a tratamento diferenciado”.
“Essa circunstância não
se mostra suficiente para obstar o pedido de adoção, por ser
perfeitamente suplantada, em muito, pelos benefícios outorgados pela
adoção”, concluiu. Ela lembrou que ainda hoje há casos de discriminação
contra filhos de mães solteiras, e que até recentemente os filhos de
pais separados enfrentavam problema semelhante.
O número deste processo não é divulgado em razão de sigilo judicial.